Rasguei as roupas que um dia não couberam dentro de mim. Rasguei os textos soltos que um dia escrevi, com ódio de mim. Quis voltar a ser uma semente, sem corpo ainda a que pertencer. Demorei a perceber que é apenas um corpo, que a alma sempre será o maior motivo para ficar, mas que devo cuidar do que me foi dado a usar.
Usei-o tantas vezes que deixei de contar, quantas feridas causei e quantas vezes o marquei. Houve tentativas irrelevantes para tentar mantê-lo, para colar todas as peças caídas e desformadas que fui deixando cair pelo caminho.
Guardei cada pedaço no meu inútil ser, não que me pesasse a consciência de ter sido a minha maior fonte de destruição. A minha alma tornava-se uma granada dentro de um corpo tão frágil.
Por muito tempo, não me causou dor ou até arrepios. Até que a minha arte se tornou demasiado abstrata, demasiado difícil de esconder dos outros e as nódoas foram aparecendo. Aqui e ali. Cada vez mais, dia após dia. Divulgando o meu pior trabalho, num corpo que me servia de tela ou até de saco de pancada, não me sentia mais feliz. O ódio não diminuía, a minha vontade duplicava, deixava de ser honesta e sensata. Passei a culpar um corpo que me servia.
O porquê de tanto ódio? Porque a aceitação parecia impossível? O caos consumia-me? A sociedade contribuía, insultando-o, como a sós fazia, denegrindo-o. Não passava de pele e osso, cambaleando por aí. Desrespeitar o meu corpo não me fazia sentir melhor. Mudá-lo para que ficasse igual aos dos demais, não me fazia gostar dele. Até que desisti. O meu corpo indesejado não se ressentiu. Persistiu aqui e de todos os que conheci, foi o único que permaneceu comigo. Apesar do sofrimento causado, das noites mal dormidas, das insónias, das mutilações, dos jejuns forçados. Ele ficou, quando todos me deixaram só.
Numa madrugada já avançada abracei-o e não me senti só. Pela primeira vez na vida, não me senti só. Estávamos juntos contra tudo o que viesse. Não precisava mais de mudanças físicas. Não precisava encontrar um lugar onde pertencer, porque me pertencia a mim mesma, ao meu corpo, ao meu coração, à minha alma.
O meu perdão fazia todo o sentido. O desrespeito que havia tido não era admissível. E nesta carta ao meu corpo (in)desejado fica o meu pedido de desculpa, por todo o mal causado, o ódio que tive, o quanto insultei, desrespeitei e pedi para ser diferente.
Por algum motivo, nesta vida, nos tínhamos encontrado, porque juntos íamos tornar-nos mais fortes. Juntos iríamos descobrir como aceitar-nos mutuamente e a mudar o nosso preconceito. Juntos descobrimos o amor.
A aceitação é um processo complicado, mas o passo mais difícil já demos: o de tentar mudar, perdoar quem fomos e tentar mudar quem seremos. Se é tempo de mudança interior.
4 Comentários
O caminho até aceitarmos o nosso corpo é longo. E, na maior parte dos casos, nunca está completo. Porque é uma batalha que assumimos para a vida.
Com mais altos e baixos, temos que, aos poucos, aprender a não dar voz aos nossos fantasmas, a olhar para as qualidades que sabemos ter e usá-las como escudo. Claro que isso nem sempre será intuitivo. Vamos cair e, até, ficar no chão algum tempo, mas depois, com força, voltamos a reerguer-nos.
Este texto é um verdadeiro alerta! Obrigada por esta mensagem
É um caminho de muitas quedas. De ir em frente e voltar para trás. O importante é termos consciência de não nos martirizarmos tanto quanto a isso. É claro que sempre mexe connosco, mas há que não pressionar tanto para chegar a algum lado ou ao peso ideal. Um dia lá chegaremos.
Um texto tão simples, bonito e com uma mensagem poderosa 🙂
Muito obrigada ?