“A vida é a perda lenta de tudo o que amamos.”
Num belo dia de primavera, decidimos pintar estas paredes de azul, pois faltava-nos tudo. O céu estava tão longe, ele estava tão longe e a casa nunca tinha estado tão vazia quanto agora.
As suas melodias já não nos acordavam pela manhã, já não nos embalavam nas madrugadas frias e, de repente, fomos deixando aquela parte da casa escurecer. Escureceu tanto quanto nossos corações, que no primeiro ano após sua morte, voltamos àquele lugar proibido e ignorado e a ficha nos caiu. Não havia ninguém. Havia um silêncio imensurável, perturbador e doente.
Juntamos-nos, naquele dia fresco de primavera e decidimos trazê-lo para perto de nós. Pintamos o azul do céu nas paredes, colocamos uma jarra de camélias em cima do piano e sentamos-nos em frente ao seu instrumento musical, sem conseguir proferir palavra.
Pareciam ter passado anos, embora tudo estivesse intocado. Parecia que nada se tinha alterado, que tudo tinha ficado no mesmo lugar de sempre e que a qualquer momento, o viríamos chegar do trabalho e sentar-se ali, para nos encher a casa de melodias calmas e alegres.
Tudo o que víamos era apenas uma triste realidade: já nada fazia sentido sem ele. A grandeza daquele espaço era ele, e sem a sua presença, as nossas eram pequenas demais para todo aquele espaço vazio.
Corremos. O máximo que conseguimos. Como doía a garganta, com todos os silêncios, com toda a amargura da saudade e das últimas palavras não proferidas. Tudo em nós se intensificava, a cada metro mais longe de casa.
Hoje retorno ao sítio que mais me fez feliz e que mais me entristeceu. A falta dele continua. O piano permanece intocável, sem nenhum centímetro mais perto da lareira ou mais longe, sem tocar na enorme carpete branca, de frente para o sol. Só que a carpete se desfez, as paredes descascam o céu que queríamos manter, o chão encheu-se de poeira.
Esta casa ruiu, por dentro. A estrutura continua forte, tudo parece intacto, mas o coração da casa morreu. A casa e os nossos corações, morreram com ele, naquele dia. E nunca mais voltou a ser como antes.
O piano continuará intocável, por mais uma geração, as poucas mobílias que deixamos continuarão por aqui, a casa irá manter-se fechada e imaculada. Para sempre, ficará fechado a sua memória ali, naquela sala onde tudo era alegria e rapidamente, se tornou uma tristeza extrema.
Quero acreditar, que eles já se encontraram no céu, e que, após tantos anos de ausência, conseguiu tocar-lhe as quatro estações, pois em nós não floresceu mais nada, desde o dia da sua partida.
A um pai, que consigo tudo levou e nos deixou com o silêncio, o vazio, a saudade e a falta das estações. Naquele dia, os nossos corações morreram com o teu.
Fechei a divisão, a porta e a parte da minha vida que insistia em não visitar. Só então, pude partir em paz, para junto deles.
[Este texto, abre uma nova rubrica no blog: fragmentos indefinidos. Todos os textos são ficcionais e inspirados em imagens aleatórias.]
4 Comentários
Adorei a ideia da nova rubrica, minha querida. E que excelente forma de a iniciares, porque este texto deixa-nos sem palavras. É de uma intensidade e emoção surpreendentes, envolvendo-nos no seu desenrolar. Porque estava a ler e a sentir que fazia parte deste momento
Awwn, muito obrigada querida Andreia! ❤️ Fico muito feliz por saber que gostaste. Significa muito para mim, que há tanto tempo não tinha novas ideias para rubricas. Muito obrigada ❤️
Gostei muito do texto Querida! <3
http://www.pimentamaisdoce.blogspot.com
Muito obrigada querida ❤️