Naquela tenda de infinitas possibilidades e de variadas maravilhas, existia uma família desunida. Um palhaço saltitante que de tanto sofrer, fazia rir os outros pois não tinha como exprimir a dor de outra forma mais simples. Uma exibicionista trancava-se na sua própria fragilidade de não chegar na temível e inatingível perfeição. Uma ginasta fazia sorrir os mais variados tipos de pessoas, que a admiravam esbugalhados, quando naqueles curtos espaços de tempo, só desejava estar fechada na sua bolha e afastada do seu talento.
No final de cada espetáculo reunidos sobre uma mesa pequena, onde todos partilhavam do mesmo pão duro com uma semana em destaque, contaram os trocos que nem para o combustível daria. Sorriram maravilhados. A vida era bela por isso mesmo. Decidiram guardar as suas migalhas para outra vez, enquanto cabisbaixos, sorridentes, caminhavam para os seus cantos da tenda, onde o chão era o único conforto e luxo que tinham. Deitados sobre si mesmos refletiam sobre o sonho que tinham e que nunca se cumprira. A felicidade, daquele lugar, parecia uma miragem absurda, uma realidade abstrata. Uma ilusão.
Nos seus sonhos mais felizes sonhavam com uma família, em redor de uma mesa recheada de cheiros e sabores de infância, de onde tinham fugido em busca de liberdade, quando só tinham encontrado escuridão e prisão. E naquela bolha se mantinham, sorrindo feito loucos, fazendo rir o mais variado público em cada sítio que passavam, quando nos seus interiores tudo ruía, tudo gritava. E em cada sorriso um grito mudo se exprimia, com vontade e revolta, pela situação se manter.
Depois de tanto tempo preso no mesmo lugar, a solidão e a prisão nos invadem, despertando-nos o medo e a falta de coragem para fugir do que nos aprisiona e não nos faz felizes. Abraçam a infelicidade da mesma maneira que fazem sorrir os outros: com facilidade.
Numa tenda de onde todos saem felizes, quem lá vive chora, no final de cada espetáculo pois não deixam cair a máscara que há muito aceitaram usar. Se é mais fácil ser uma personagem do que alguém que nada tem pelo que lutar.
Quem mais faz sorrir, chora em silêncio, em redor da sua própria sombra, na penumbra de uma noite de chuva. Pode nem estar chovendo lá fora, mas ali dentro tudo chove, tudo sofre. Todos ouvem os gritos mudos dos outros, tentando lidar com a sua própria revolta, de não ser humano o suficiente para ajudar nem para fugir de si mesmo.
O circo. As pessoas mais felizes. Por fora. As máscaras. Os gritos sufocados. Tudo cai, menos a tenda que se enche de aplausos e gargalhadas felizes. Aplaudimos a ignorância. Aplaudimos a dor de sermos quem mais odiamos. Aplaudimos, de pé, sem nem pestanejar ou duvidar da felicidade daquelas pessoas.
A tenda, onde os sentimentos são desprezados, a ignorância é aplaudida, os sonhos não passam de uma miragem e as gargalhadas encobrem as mágoas e a infelicidade.
2 Comentários
Acolhemos uma ilusão como se representasse os nossos sonhos inteiros e, pior, acreditamos que distinguimos a verdade, quando as máscaras escondem tanta coisa.
Que texto fantástico, minha querida!
Nem mais. Muito obrigada! 🤍